quinta-feira, 4 de junho de 2009

Direito Alternativo - O Processo Como Local de Democracia Dialogal

Iniciaremos com a expressão de Dinamarco “É vaga e pouco acrescenta ao conhecimento do processo a usual afirmação de que ele é instrumento, enquanto não acompanhada da indicação dos objetivos a serem alcançados mediante seu emprego”. Incessantemente nos discursos alternativos nos deparamos com a sentença radicalidade democrática. O norte do movimento alternativo é a preocupação com a democracia substancial. É o pano de fundo. O início e o fim. Direito e democracia, além disso, estão umbilicalmente ligados, que posso afirmar (concordando com Luigi Ferrajoli), que salvar o futuro do direito é salvar o futuro da democracia.
É no processo, via processo, pois, o direito se faz presente na realização da democracia substancial. Ai está seu objetivo maior, seu compromisso, sua dignidade!
Parece-me que na democracia se busca a autonomia do indivíduo; que ele possa vivenciar a si próprio e a realidade de forma não-passiva; que tenha domínio de seu destino e de sua vida e; seja responsável pela história. Enfim, possa solucionar os conflitos e as desavenças que o alcancem em sua trajetória de vida. O indivíduo autônomo, pois, resolve democraticamente seus litígios, através do diálogo, ou seja, disposto a conversar. Quanto mais consolidado for a noção de democracia e de autonomia/liberdade no interior do indivíduo, o respeito aos valores éticos-políticos estarão presentes na sua vida diária.
O processo (fruto da desavença), surge no momento do caos da democracia dialogal, ou seja, quando as partes não tentam solucionar seus atritos mediante uma conversa, possibilitando expor seus sentimentos e de ouvir. Esse momento é difícil para as partes, porque alguns têm medo ou receio pelo fato de que, nesta condição não se tem como donos da verdade e nunca estão dispostos a aceitar o diverso; ou ser tolerantes ao permitir que o outro tenha direito a professar a própria verdade. Nesta situação de conturbação da democracia/autonomia é que as partes buscam o judiciário, e este imponha a vontade do Estado, via processo.
É bastante esclarecedor o exemplo no direito de família. É evidente que um casal que está disposto a ouvir e a conversar, apesar do sofrimento que ocorre na separação, vem a juízo e rompe o vínculo do casamento com toda dignidade (mas não tem sentido um litígio amigável e digno de separação se realizar judicialmente; o ideal democraticamente falando, seria que as partes simplesmente comparececem ao cartório onde celebraram o casamento e se separem, ou seja, rompam o pacto da mesma forma que o constituíram. Com a perda da capacidade de conversa, terminam por não mais conseguirem viver juntos nem separados, e mantém o vínculo problemático e neurótico através do processo de separação judicial. Por isso que as ações de separação e suas consequências (alimentos, guarda de filhos, etc) se perpetuam: o processo se torna o instrumento não da democracia, mas da neurose das partes.
A indagação é: como, então, fazer com que o processo sirva à democracia como local para diálogo?
Num primeiro momento, tem que invadir o imaginário do advogado para que abandonem a atividade burocrática de aceitar incondicionalmente a ’’verdade“ das partes e encaixá-las, jogando-as num tipo legal, como mecanismo subsunçor. Outrossim, deve renunciar o paternalismo que o caracteriza, como se o problema não fosse mais das partes, e sim dele, profissional. E a partir daí, utilizando seu local privilegiado de fala, buscar resgatar a possibilidade dialogal entre os litigantes para, com eles, atuar para que reassumam a autonomia de solução do litígio. Ou seja, o advogado como um Ético Parcial comprometido com as partes, justiça para todos, no sentido de democratização do próprio saber jurídico.
Do mesmo modo, o imaginário do juiz e do promotor deve ser invadido, com também abandono da atividade burocrático-paternalista, para que, como Éticos Parciais possam ouvir as angústias das partes e, utilizando seu local privilegiado de fala, buscar, agora já em juízo, a possibilidade de desenvolver um diálogo entre as partes. É o juiz e o promotor quem deve descer de seu doentio pedestal, vindo e se comunicando diretamente com as partes para, com elas, num tipo de justiça do amor, lutar com todas as forças para que os litigantes superem, por si mesmos, seus atritos e problemas.
A vontade do Estado, a decisão coercitiva, da força decisional, só deve ser utilizada, pois, para situações limites, ou seja, quando a capacidade de conversa ou a intolerância dos litigantes (ou de apenas um deles) for insuperável. Neste árduo momento, perante o fracasso da democracia, é que deve surgir o ato decisório Estatal.
Num segundo momento, o processo, para atingir a autonomia/democracia deve ser o local reservado ao apaziguamento. O instrumento processual necessariamente deve propiciar as partes de maneira mais abrangente possível, explicar seus prós e contras, seus encantos e desencantos. É da fala que se possibilita o diálogo (bem como a atuação do operador do direito não se restringir apenas à consequência, mas também a causa do litígio, o nascedouro de todo o problema e assim criar um campo de análise mais geral do caso sub judice).
A fala do qual retrato aqui não é apenas a possibilidade do advogado se expressar, mas também, mormente, a própria parte.
A possibilidade da fala (com limites na tolerância) e da comprovação de suas razões (ampla defesa e contraditório) não deve sofrer limites (a não ser que extrapole a liberdade e a tolerância).
Todavia, o processo não é local reservado tão-somente à fala, mas, outrossim, da escuta, elemento essencial do contraditório: fazer com que sejas ouvido. De nada adianta possibilitar a fala se não se estabelecer do outro lado a imposição da escuta, já que há uma tendência das pessoas ao monólogo: falam, falam, sem nada ouvir, ou seja, desaparece a possibilidade da democracia/ autonomia. A desestigmatização do processo e da própria audiência é importante para que as pessoas não se sintam amedrontadas ou ameaçadas.
Mas a escuta não deve alcançar, como se poderia pensar a priori, apenas as partes, mas também o próprio juiz, o qual não tem sido preparado para servir à democracia (ouvir/falar/dialogar), mas à prepotência.
O processo, mecanismo do direito na instrução da democracia, deve, portanto, estar calcado em dois princípios: local de fala e escuta, os quais são informadores dos princípios que lhe são secundários; contraditório e ampla defesa. E eles têm um objetivo: possibilitar que as partes, autonomamente, resolvam seus conflitos, reservando-se o ato de força decisional estatal a situações limítrofes, ao se verificar a enfermidade da Democracia Dialogal.

Bibliografia: CARVALHO, AMILTON BUENO DE. Direito Alternativo em movimento. 6° edição. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris- 2005

Um comentário:

  1. O texto que acabei de ler e o qual comento é notório principalmente pelo fato de expor de uma forma filosófica o sentido do processo judicial segundo entendimento do movimento do direito alternativo em relação às funções deste, além de um aspecto subjetivo objetivado que relaciona-se às partes do litígio e das figuras do juiz, advogado e promotor. O enfoque de tal proposta da democracia dialogal é deontológico por supor que nesta "se busca a autonomia do indivíduo; que ele possa vivenciar a si próprio e a realidade de forma não-passiva; que tenha domínio de seu destino e de sua vida e; seja responsável pela história". O problema, creio, está justamente na concepção que o indiíduo tem do outro e da própria realidade que o cerca: estamos no mundo da pessoa alienada (ALI-É-NADA!), onde os interesses alheios parecem ser sempre estranhos e acredita-se estar a lei de alguma forma ao nosso lado. A questão é política, filosófica, existencial. Só em última análise ela é verdadeiramente jurídica. É uma estrutura imóvel que se impõe e faz do juiz o senhor da razão, do advogado o defensor dos fracos e oprimidos e do promotor o guardião da chave do paraíso das leis. A democracia em seu sentido mais completo e verdadeiro não é enxergada e, numa miopia eterna, limita-se aos direitos INDIVIDUAIS, à escolha INDIVIDUAL em determinada circunstância, enfim, age em detrimento da coletividade e do diálogo: trabalha com a imposição.
    Excelente produção! Abraços!

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